"As mulheres naquela ocasião com
dardos e lanças, de maneira junto ao portilho aberto se puseram, outras com
murrão, pólvora e pelouros com valeroso brio e ousadia não recebendo assombo
dos estouros socorriam, onde a falta havia". Em 1646, elas lutaram contra
o invasor holandês e sagraram-se as Guerreiras Tejucopapo
PIMENTA NOS OLHOS MISTURADA À ÁGUA, ERA A ARMA SECRETA |
A
luta foi desigual. Cerca de 600 holandeses e brasileiros aliados, fortemente
armados, saíram da ilha de Itamaracá, em Pernambuco, para saquear a pequena
aldeia de São Lourenço do Tejucopapo, hoje distrito de Goiana, a 63 km do
Recife. No local, quase não havia homens para resistir ao ataque. Restava
basicamente uma tropa maltrapilha de mulheres - a maioria agricultoras de
origem indígena. Mesmo assim, naquele 24 de abril de 1646, travou-se ali uma
batalha épica, de fortes contra fracos, que ganhou contornos de mito ao
consagrar a vitória do improvisado exército feminino e a expulsão dos
invasores.
Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina estavam à frente desse combate. Elas e as companheiras recorreram às poucas armas que havia e a objetos rústicos, como estrovengas (roçadeiras), paus e chuços, uma espécie de lança para catar crustáceos. Tachos com água fervente e pimenta-malagueta esmagada em pilões foram especialmente preparados para a peleja. O alvo eram os olhos do inimigo. Desnorteados pela ardência da mistura e a dor das queimaduras, os soldados caíam estrebuchando nas roças ou na única rua do povoado de 500 habitantes.
Avisadas da chegada do inimigo por um vigia a postos no porto que servia a região, a 6 km da vila, as mulheres de Tejucopapo adotaram a mesma tática de guerrilha de seus homens, que, naquele dia, se encontravam no Recife, vendendo caranguejos, ou envolvidos em tocaias contra os holandeses em outras praias do litoral norte pernambucano. Alguns poucos ficaram de guarda. Por iniciativa própria, elas prepararam a resistência: reforçaram as cercas paliçadas, planejaram emboscadas, transformaram em armas o que fosse possível. Tudo isso num intervalo de cerca de 12 horas antes da chegada dos invasores.
No momento do confronto, no meio da manhã, partiram para a luta aos gritos, movidas pela fé católica contra os "hereges seguidores de Martinho Lutero" e pelo desejo de defender o território. Maria Quitéria combatia à dianteira, com um crucifixo em punho, bradando orações para os santos mártires Cosme e Damião. Surpreendidos pela resistência improvisada, os holandeses recuaram por algum tempo, mas voltaram para vingar seus mortos e feridos. Nessa investida, com machados e alfanges (espécie de sabre), derrubaram paliçadas e mataram um número de mulheres até hoje desconhecido.
A vitória estrangeira, no segundo pico das escaramuças, parecia assegurada. Os ataques de água com pimenta, porém, não cessaram - nem a bravura das guerreiras do Tejucopapo. Estropiados, os soldados flamengos e seus comparsas nativos, entre índios e caboclos de Itamaracá, resolveram bater em retirada. Àquela altura, já temiam a chegada de reforços masculinos bem armados. No fim da sangrenta batalha, que durou quase todo o dia, havia centenas de cadáveres holandeses no chão. Os sobreviventes correram para o porto em busca de suas barcas de remo e vela, deixando para trás apetrechos de guerra, mantimentos roubados e corpos ensanguentados. Nunca mais voltariam ao povoado.
De acordo com Luzilá Gonçalves Ferreira, professora de letras na Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora e autora de Mulheres e Abolição da Escravatura no Nordeste, os estrangeiros foram até o povoado em busca de alimento. Nos estertores da dominação holandesa em Pernambuco - e sem a presença de Maurício de Nassau, que regressara à Europa em 1643 -, armazéns do Recife estavam quase vazios. Em Itamaracá, a situação era ainda mais grave. Nada chegava da capital da província. Famintos, mas bem armados, decidiram então procurar provimentos mais ao norte. O porto Ponta de Pedras favorecia o acesso à região e o povoado de São Lourenço do Tejucopapo era um alvo fácil. Lá, poderiam saquear plantações e engenhos. "Sabiam (os holandeses) que em seu distrito havia roçarias de mandioca em muita quantidade, por ser a terra fértil e abundante delas, e muitos legumes e frutas de espinhos", afirma o cronista português do século 17 Diogo Lopes Santiago em História da Guerra em Pernambuco, ressaltando que a intenção dos invasores era matar a população local antes que as infantarias de Igarassu e Goiana pudessem acudir.
Divergências
A historiografia brasileira assinala o total de 300 baixas nas linhas flamengas (a metade de todo o contingente) e dá a Maria Camarão a primazia de ter convocado as mulheres para a guerra. Para os holandeses, o número de mortos não passou de 70. Em seus escritos sobre os fatos, também no século 17, o viajante Johan Nieuhof dá a versão dos conterrâneos: "Considerando que a escassez de provisões constituía um dos principais obstáculos a serem vencidos do nosso lado, julgou-se necessário estabelecer um pequeno acampamento perto de São Lourenço". Segundo ele, o efetivo era bem menor do que o destacado nos relatos brasileiros. Não passava de 110 holandeses, sob o comando de Willem Lambertsz e Klaes Klaesz e mais 180 voluntários de Itamaracá e índios.
Seja qual for o total de combatentes e mortos, de ambos os lados, pesquisadores como José Bernardo Fernandes Gama (Memórias Históricas da Província de Pernambuco), Antônio Joaquim de Mello (Varões Ilustres de Pernambuco) e Pereira da Costa (Anais Pernambucanos) descrevem o feito das guerreiras de Tejucopapo como "heroico" baseados grande parte em relatos de O Valoroso Lucideno - Triunfo da Liberdade (1648), de frei Manuel Calado. O religioso narrou os fatos ressaltando a oposição de credos (católicos x protestantes) e encerra o texto com um poema. "Não sei se podemos chamar de ‘batalha’ os combates havidos em Tejucopapo", diz Luzilá. "O certo é que a derrota holandesa é descrita como resultado da espantosa coragem das senhoras que enfrentaram o inimigo com as poucas armas que tinham."
Nove anos depois dos ataques de pimenta, as tropas de Sigismund van Schkoppe se renderiam no Recife, após a Batalha dos Guararapes, encerrando 24 anos de ocupação holandesa. Até o início do século 19, a notoriedade à resistência aos flamengos se restringia ao heroísmo masculino, representado nos atos de figuras como o senhor de engenho André Vidal de Negreiros e o indígena Felipe Camarão. Tejucopapo, esquecida por 200 anos, só ganhou algum destaque quando o país começou a construir sua identidade nacional e escrever sua história com maior objetividade e respeito às fontes documentais.
O historiador Antônio Joaquim de Melo lembra que ao visitar Pernambuco, em 1859, dom Pedro II foi ao povoado ver "o lugar onde as heroínas tejucopapenses, essas amazonas que se imortalizaram na história, roubaram aos homens a glória de defenderem a pátria contra o domínio estrangeiro".
Para Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco, autor de livros sobre a região, o episódio existiu, está documentado, mas não teve importância no conjunto da Restauração Pernambucana. Contudo, as escaramuças de Tejucopapo serviram para agregar um mito à nação. "Mitos são tão fortes quanto a história no processo social e civilizatório", afirma. "E esse atendia às necessidades de consolidar o país em formação." É mais um motivo para não negligenciar a batalha, diz o pesquisador Marcílio Brandão, diretor de um filme sobre o tema: "Foi a primeira participação de um coletivo feminino em um conflito armado no Brasil".
Maria Camarão, Maria Quitéria, Maria Clara e Joaquina estavam à frente desse combate. Elas e as companheiras recorreram às poucas armas que havia e a objetos rústicos, como estrovengas (roçadeiras), paus e chuços, uma espécie de lança para catar crustáceos. Tachos com água fervente e pimenta-malagueta esmagada em pilões foram especialmente preparados para a peleja. O alvo eram os olhos do inimigo. Desnorteados pela ardência da mistura e a dor das queimaduras, os soldados caíam estrebuchando nas roças ou na única rua do povoado de 500 habitantes.
Avisadas da chegada do inimigo por um vigia a postos no porto que servia a região, a 6 km da vila, as mulheres de Tejucopapo adotaram a mesma tática de guerrilha de seus homens, que, naquele dia, se encontravam no Recife, vendendo caranguejos, ou envolvidos em tocaias contra os holandeses em outras praias do litoral norte pernambucano. Alguns poucos ficaram de guarda. Por iniciativa própria, elas prepararam a resistência: reforçaram as cercas paliçadas, planejaram emboscadas, transformaram em armas o que fosse possível. Tudo isso num intervalo de cerca de 12 horas antes da chegada dos invasores.
No momento do confronto, no meio da manhã, partiram para a luta aos gritos, movidas pela fé católica contra os "hereges seguidores de Martinho Lutero" e pelo desejo de defender o território. Maria Quitéria combatia à dianteira, com um crucifixo em punho, bradando orações para os santos mártires Cosme e Damião. Surpreendidos pela resistência improvisada, os holandeses recuaram por algum tempo, mas voltaram para vingar seus mortos e feridos. Nessa investida, com machados e alfanges (espécie de sabre), derrubaram paliçadas e mataram um número de mulheres até hoje desconhecido.
A vitória estrangeira, no segundo pico das escaramuças, parecia assegurada. Os ataques de água com pimenta, porém, não cessaram - nem a bravura das guerreiras do Tejucopapo. Estropiados, os soldados flamengos e seus comparsas nativos, entre índios e caboclos de Itamaracá, resolveram bater em retirada. Àquela altura, já temiam a chegada de reforços masculinos bem armados. No fim da sangrenta batalha, que durou quase todo o dia, havia centenas de cadáveres holandeses no chão. Os sobreviventes correram para o porto em busca de suas barcas de remo e vela, deixando para trás apetrechos de guerra, mantimentos roubados e corpos ensanguentados. Nunca mais voltariam ao povoado.
De acordo com Luzilá Gonçalves Ferreira, professora de letras na Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora e autora de Mulheres e Abolição da Escravatura no Nordeste, os estrangeiros foram até o povoado em busca de alimento. Nos estertores da dominação holandesa em Pernambuco - e sem a presença de Maurício de Nassau, que regressara à Europa em 1643 -, armazéns do Recife estavam quase vazios. Em Itamaracá, a situação era ainda mais grave. Nada chegava da capital da província. Famintos, mas bem armados, decidiram então procurar provimentos mais ao norte. O porto Ponta de Pedras favorecia o acesso à região e o povoado de São Lourenço do Tejucopapo era um alvo fácil. Lá, poderiam saquear plantações e engenhos. "Sabiam (os holandeses) que em seu distrito havia roçarias de mandioca em muita quantidade, por ser a terra fértil e abundante delas, e muitos legumes e frutas de espinhos", afirma o cronista português do século 17 Diogo Lopes Santiago em História da Guerra em Pernambuco, ressaltando que a intenção dos invasores era matar a população local antes que as infantarias de Igarassu e Goiana pudessem acudir.
Divergências
A historiografia brasileira assinala o total de 300 baixas nas linhas flamengas (a metade de todo o contingente) e dá a Maria Camarão a primazia de ter convocado as mulheres para a guerra. Para os holandeses, o número de mortos não passou de 70. Em seus escritos sobre os fatos, também no século 17, o viajante Johan Nieuhof dá a versão dos conterrâneos: "Considerando que a escassez de provisões constituía um dos principais obstáculos a serem vencidos do nosso lado, julgou-se necessário estabelecer um pequeno acampamento perto de São Lourenço". Segundo ele, o efetivo era bem menor do que o destacado nos relatos brasileiros. Não passava de 110 holandeses, sob o comando de Willem Lambertsz e Klaes Klaesz e mais 180 voluntários de Itamaracá e índios.
Seja qual for o total de combatentes e mortos, de ambos os lados, pesquisadores como José Bernardo Fernandes Gama (Memórias Históricas da Província de Pernambuco), Antônio Joaquim de Mello (Varões Ilustres de Pernambuco) e Pereira da Costa (Anais Pernambucanos) descrevem o feito das guerreiras de Tejucopapo como "heroico" baseados grande parte em relatos de O Valoroso Lucideno - Triunfo da Liberdade (1648), de frei Manuel Calado. O religioso narrou os fatos ressaltando a oposição de credos (católicos x protestantes) e encerra o texto com um poema. "Não sei se podemos chamar de ‘batalha’ os combates havidos em Tejucopapo", diz Luzilá. "O certo é que a derrota holandesa é descrita como resultado da espantosa coragem das senhoras que enfrentaram o inimigo com as poucas armas que tinham."
Nove anos depois dos ataques de pimenta, as tropas de Sigismund van Schkoppe se renderiam no Recife, após a Batalha dos Guararapes, encerrando 24 anos de ocupação holandesa. Até o início do século 19, a notoriedade à resistência aos flamengos se restringia ao heroísmo masculino, representado nos atos de figuras como o senhor de engenho André Vidal de Negreiros e o indígena Felipe Camarão. Tejucopapo, esquecida por 200 anos, só ganhou algum destaque quando o país começou a construir sua identidade nacional e escrever sua história com maior objetividade e respeito às fontes documentais.
O historiador Antônio Joaquim de Melo lembra que ao visitar Pernambuco, em 1859, dom Pedro II foi ao povoado ver "o lugar onde as heroínas tejucopapenses, essas amazonas que se imortalizaram na história, roubaram aos homens a glória de defenderem a pátria contra o domínio estrangeiro".
Para Marcos Galindo, professor da Universidade Federal de Pernambuco, autor de livros sobre a região, o episódio existiu, está documentado, mas não teve importância no conjunto da Restauração Pernambucana. Contudo, as escaramuças de Tejucopapo serviram para agregar um mito à nação. "Mitos são tão fortes quanto a história no processo social e civilizatório", afirma. "E esse atendia às necessidades de consolidar o país em formação." É mais um motivo para não negligenciar a batalha, diz o pesquisador Marcílio Brandão, diretor de um filme sobre o tema: "Foi a primeira participação de um coletivo feminino em um conflito armado no Brasil".
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